Quando era pequena, meus pais
diziam-me para andar na linha. Tal advertência significava, basicamente, que eu
deveria respeitar os preceitos e os valores morais vigentes na sociedade. Riram
da vez em que esbravejei, aos meus sete anos de idade, que jamais me casaria ou
teria filhos. Olhavam-me com a piedade de quem sabe estar diante de um ser
humano ainda em formação, longe das contaminações dos costumes. Eu pouco tinha
ideia do que ainda estava por vir.
Meu pai era seguidor da umbanda. Descendente
de imigrantes italianos, pouco se importava com o passado histórico de um
simples sobrenome. Amava a terra em que nascera, em que estava. Era homem e
havia milhões de oportunidades que se abriam a ele. Já minha mãe, de família
negra, abandonou o catolicismo quando eu completei cinco anos de idade, e
deixaria claro que nunca mais voltaria a pôr os pés em uma igreja. Apesar
disso, não renunciou ao cristianismo, migrando então para o espiritismo. E
neste ponto poderia ser óbvia a aproximação das filosofias de vida seguidas por
meu pai e por minha mãe. Mas não, quando se escolhe uma religião, parece
fechar-se o mundo, ninguém entende ninguém, e o mito da superioridade é quase
que inevitável.
Em minha casa, vivíamos sob um
machismo imensurável. As tarefas domésticas só poderiam ser feitas por mim e
por minha mãe, jamais por meu pai e por meu irmão. Quando eu questionava essa
configuração, obtinha a resposta, em tom natural: porque eles são homens. Essa situação caracteriza apenas um exemplo
de tantos hábitos praticados que nos punham em estado desigual, que destinavam
nós, mulheres, ao exercício das coisas simples e medíocres. Foi na religião que
minha mãe encontrou uma possível vingança. E essa “vingança” era a mais
detestável possível. O espiritismo pregava o estudo do evangelho, a atividade
de leitura diária de livros não só sagrados, como também literários e
filosóficos. Era uma crença que se dizia racional (?) e situava Jesus
historicamente como um ser que atingiu a perfeição espiritual, mas que já
tivera outras reencarnações (há uma corrente espírita que acredita que Jesus
fora a reencarnação de Sócrates). Justamente por todas as justificativas bem
elaboradas dadas pela doutrina criada pelo educador francês Allan Kardec, minha
mãe julgava mais lúcido de sua parte crer em Deus através deste viés, e não
através dos rituais da umbanda. Respondia, pois, preconceito com preconceito.
Fazia questão de dizer o quanto meu pai era irracional de acreditar nas
entidades e nos orixás advindos do candomblé, minimizava a importância das
curas oferecidas através de influências de cerimônias indígenas e apenas
creditava algum valor à religião quando se deparava, vez ou outra, com
fundamentos análogos aos do catolicismo e espiritismo. Ela muito me lembrava os
portugueses intencionando a catequização de negros e índios no Brasil. E ela
era vítima desse processo histórico! Porém, a necessidade criada em torno da
humanidade de se crer e temer à Deus nunca a deixou enxergar essa falha, quanto
menos as mais profundas.
Obviamente, a religião é uma criação
humana e atende a determinados interesses. Não importa qual fora a primeira ou
qual será a última, onde ela teria ou terá sido criada, enfim. O que importa é
que ela sempre refletirá uma configuração social que deseja ser mantida. O
casamento, por exemplo, foi inventado para ser uma extensão das propriedades do
homem, e financeiramente significou isso por muito tempo. Entretanto, atrelado
a isso, formou-se a ideia da mulher na sociedade. Pagava-se o dote, o pai doava
terras ao genro. Evidentemente, casar era um negócio e gerava dinheiro. Por
detrás dos panos – ou melhor, dos documentos oficiais – a mulher tornava-se um
bem não-financeiro do marido, mas tão valioso quanto. Por quê? Porque ela
atestava sua virilidade; a dominação de uma mulher poderia ser tão interessante
quanto a dominação de um território, e era isso que se fazia. Não digo que o
casamento de hoje em dia não possa ser diferente, mas é importante que saibamos
sua origem. É como o negro assalariado: as condições de trabalho podem ser
lindas, mas observar ele sempre ocupando cargos menores do que os dos brancos é
de se questionar.
De qualquer maneira, o que quero
dizer é que a religião, além de tudo, é uma extensão e tentativa de reafirmação
do machismo na sociedade. A visibilidade dada aos personagens masculinos, seja
Jesus, Maomé, Moisés, Buda, Oxóssi, é maior do que a dada às personagens
femininas, que quando ocupam lugar de prestígio, é sob a forma de abdicação do
corpo, das práticas que a lembram de seu gênero e envolta dos mitos que a
perseguem – a exemplo da virgem, digo, virgem
Maria. Embora se diga que os anjos ou Krishna não possuem sexo, são eles
retratados como figuras masculinas. Somado ao preconceito étnico que sofre as
religiões de origem africana, está o senso comum do entendimento da figura da
Pomba Gira, que ou se reflete aos leigos como puta, destruidora de casamentos,
ou como motivo de chacota. Dentro do exercício religioso, seu lado “ruim”
utiliza-se da beleza feminina para externar-se.
E
Deus, bem... que é Deus senão o
retrato do homem detentor do poder e da razão, único que pode julgar e decidir
o destino, figura máxima do privilégio do macho?
A
história que te contam é outra, mas estou aqui para te lembrar: Deus não criou
o homem a sua imagem e semelhança, e sim o homem criou Deus a sua imagem e
semelhança. Bem como a mulher não veio da costela de um homem, e sim ele veio
do útero de uma mulher. E isso é o que se pode compreender como verdade, nada
mais.