quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Clandestina



            Imaginou a existência. Pensar sem linguagem é inconcebível aos seus olhos tão treinados a enxergarem o mundo dentro da lógica semiótica que traduz o cotidiano em palavras. Não lembrava de quando nasceu, de quando respondia mecanicamente aos movimentos dos pais, de quando não tinha noção de sociedade, economia, política. Era impraticável as atitudes de quando tinha apenas alguns meses de vida: comer deixara de ser apenas por necessidade, e vestir-se também. Aos poucos sabia que fora inserida em um sistema ditador. Ele a disse claramente: “Tu és mulher. Tu és fraca. Tu és latina. Tu és puta”. Não havia meios com que pudesse lutar para simplesmente não estar ali, pois ignorar a formação arbitrária da sociedade não constava na lista de concessões que o universo a oferecera.
            Admirava cinema francês, música britânica, moda italiana, comida estadunidense. Por aí, já começara a encarar as dificuldades geográficas que massacram o sujeito latino-americano. Para ele, muita coisa era (é) negada. Para ele, a bem da verdade, praticamente tudo era (é) negado. Seu povo foi explorado, colonizado, massacrado e nenhuma esperança de mudança pode-se ter à vista. Os grandes continuam sugando dos menores, e as belezas naturais dos países americanos que quase não são lembrados de serem americanos porque somente um país na América é digno, da perspectiva predominante, de ser denominado pelo adjetivo de um continente inteiro, ah... essas belezas estão mortas. Ou melhor! Essas belezas viraram outras belezas que só são belezas para quem as concentram em seus próprios bolsos. Ou em suas contas gorduchas, abertas em paraísos fiscais, paraísos europeus, paraísos só para quem tem as belezas e podem comprar as passagens e garantir as hospedagens e tanta coisa que o sujeito latino-americano está longe de ter, e se tem, por alguma obra sistemática do destino, é sempre o estrangeiro desses lugares.

            Buscara, constantemente, viver histórias alheias à realidade de seu país. Também buscara conhecer pessoas etnicamente estranhas ao território latino: olho azul, cabelo loiro, sardinhas pipocando nas bochechas. Porém soube que esse indivíduo etnocêntrico europeu-estadunidense não a bem queria, visto que a mulher mestiça das Américas é pintada como repositório de esperma. E seriam só as latinas? Claramente que não, mas com toda a certeza a dicotomia do “mulher para casar/mulher para trepar” evidencia-se em grande, grandessíssimas escalas, nas colonizadas em solo americano, que guardam no peito toda essa sujeira não noticiada, não escancarada. Economicamente, ainda somos exploradas. Sexualmente também. Pretende, então, falar mais sobre isso na mesa de bar. Pretende problematizar esse lugar mesquinho que a fizerem engolir com chá inglês.



segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Carta de um jovem reacionário


Então para por aí. Pode ir parando, dando meia volta e se colocando em seu devido lugar. Nós já reconhecemos que vocês representam boa parcela da sociedade e estamos estudando melhores salários – embora já se possa notar o grande avanço histórico que possibilita a inserção da mulher no mercado de trabalho. Aliás, não sei como não se envergonham de pedir salários igualitários quando o governo outorga suas aposentadorias anos antes da nossa. Eu pensava que eram minimamente inteligentes e saberiam o que quer dizer “recompensa”. Também estamos cansados de dizer que podem sim se prevenir da gravidez. Inclusive, esse é um dever de todas vocês: só embucha quem quer, entendeu? Suas ancestrais lutaram pela liberação dos métodos contraceptivos porque estafaram-se de pôr mais de dez crianças no mundo, então tudo o que podem fazer é valorizar esse incrível ganho feminino, e não ficar por aí pregando o assassinato de fetos. Vocês argumentam que a descriminalização do aborto evitaria mortes, mas não enxergam que a culpa é exclusivamente de vocês mesmas. Se eu fosse mulher, com certeza daria um jeito: é pílula, é injeção, é DIU.... Enquanto homem eu não posso fazer nada, me desculpem, trata-se de biologia, eu não nasci para ter filhos. O máximo, de minha parte, é a camisinha, só que ela não é cem por cento eficaz, rola alguns imprevistos, fora que incomoda muito às vezes. Enfim, homem é outro papo.
Uma conquista importante foi a erradicação da moda feminina que previa apenas o uso de vestidos e saias longas, sempre cobrindo o corpo até os calcanhares. Isso, nós homens agradecemos. O que é bonito é para ser mostrado, e eu não sei quem inventou aquelas anáguas malditas que não nos deixavam apreciar as boas curvas da mulher. Mas calma, não precisa começar a me ofender por causa disso, eu sei que muitas de vocês realmente preferem uma calça jeans, e podem usá-las à vontade. Eu, sinceramente, não entendo porque vocês reclamam de tudo, afinal de contas estão livres para decidir o tipo e o tamanho da roupa que irão vestir. Só que eu acho que em algum momento da história vocês perderam o bom-senso. É permitido o short curto? Sim, é permitido. Logo, eu tenho todo o direito de olhar. Saiam dessa, querem controlar até meu campo de visão. O negócio não era fazer com que deixássemos de interferir em suas vidas? Pronto, não interferimos mais. Portanto, vocês também não podem interferir na nossa. Está aí o problema das feministas atuais: desconsideram o antigo movimento feminista e exigem privilégios simplesmente por serem mulheres. Nada a ver isso. Até votar vocês podem, deviam mesmo era exercer esse direito mais corretamente, porque essa quantidade de político corrupto não é normal. Quanto aos cargos de poder, vocês só não os ocupam em demasia porque, coincidentemente, ainda não existem muitas mulheres capacitadas. É ridículo dizerem que só por serem mulheres não estão presentes, maciçamente, no congresso. Estudem mais, invistam em suas carreiras, só assim poderão chegar no lugar em que desejam. Mas privilégios vocês não terão, ninguém aqui vai passar na frente do amiguinho só porque nasceu com vagina. É tudo balela essa história de que o machismo as persegue todos os dias. Vocês podem ir e vir à vontade, têm completa liberdade para andar desacompanhadas e decidirem sobre seus destinos. Eu, por minha vez, posso tecer um elogio caso lhe veja andando pela rua. Não entendo um elogio como um problema, vocês estão muito paranoicas. Além de tudo, as relações entre casais estão mais liberais, o casamento não é mais necessário e a virgindade muito menos. Daí vocês começam a reclamar que passamos a mão, que forçamos um beijinho aqui e outro ali, mas é tudo reflexo da atualidade. A quantidade de menina que vira corredor em balada, passando na mão de todo mundo, não é brincadeira não. E aí vocês dizem que eu não posso reclamar de beijar uma garota que se bobear, chupou sei lá quantos paus dentro do banheiro. Poxa, fala sério, cada um tem que ver seu lado também. Do mesmo jeito que mulher se incomoda de levar uma passada de mão na bunda, o homem que é homem também se incomoda de pagar um boquete por tabela. Se combinarmos de sermos solidários uns com os outros, aposto que muita coisa muda nesse mundo.
Retomando minhas ideias, peço para que pensem nas universidades. Elas estão lotadas de mulheres! Vocês estão sempre nos dizendo que tememos por encontrarmos-lhes ocupando os mais diversos espaços, porém estão totalmente enganadas. Eu amo ver mulher, me distrai muito. Eu só não gosto de mulher feia, e o feminismo de hoje em dia quer apenas isso, o advento da feiura. Cismaram com essa coisa de que não precisa depilar, sendo que na verdade, deixar aqueles cabelos na perna e debaixo do braço – para não citar outros lugares – é nojento pelo simples fato de que mulher tem que ser lisinha, bonitinha, cheirosinha. Imagina só eu lá fazendo carinho na minha namorada e passo a mão na coxa dela e OPA! Parece que estou alisando um barbudo. Não dá, sério. Acaba comigo, me broxa, destrói minha virilidade.
De qualquer maneira, não quero me estender mais nesse assunto. Não dá para discutir com vocês. Eu apresento meus pensamentos, da forma mais pura e elucidativa, e o que recebo em troca? Xingamentos, ofensas, agressividade. O feminismo se perdeu. Vocês não sabem mais o que é ser mãe, vocês não sabem mais o que é conquistar um homem, vocês não sabem mais o que é ser feminina. Acho que nem cozinhar vocês devem saber mais. Por essa razão as chamamos de “feminazi”: vocês decidiram levar toda essa escrotagem para a vida de vocês e ainda querem pisar em nossas cabeças. Ai, ai.... Saudade da época em que mulher ficava quietinha em casa preparando um lanche para o marido. Saudade da época em que eu podia fazer minhas piadinhas eróticas com qualquer uma que passasse pela rua. Saudade de um tempo que não volta mais.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Valentina’s Day*




"A menina sente que o corpo lhe escapa, não é mais a expressão clara de sua individualidade ; torna-se estranho para ela; e, no mesmo momento, ela é encarada por outrem como uma coisa: na rua, acompanham-na com o olhar, comentam sobre sua anatomia; ela gostaria de ficar invisível; tem medo de tornar-se carne e medo de mostrar essa carne".
(BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, Vol. II, p. 407, 1949)








            Eu acordei aí eu queria brincar, mas minha mãe não parava de falar que era pra eu tomar meu café porque a gente tem que ficar forte pro resto do dia. Outro dia eu bem tava vendo no filme da sessão da tarde que lá nos Estados Unidos o pessoal come bacon com ovo e com panqueca, só que eles não são fortes não, eles são que nem a gente. Também não dá pra saber, eu nunca briguei com ninguém lá depois do café pra poder falar “nossa como essa pessoa é forte”. Eu acho que o meu nescau é melhor, na propaganda mesmo fala que a gente tem mais energia depois que toma um copão de nescau, mesmo se ele tiver lotado de açúcar que nem o meu tava naquele dia porque eu coloquei escondido. Depois que eu tomei ainda tive que escovar o dente, tinha um que tava bambo, meio solto, mas eu não tirei não porque dói à beça e sangra e eu posso engasgar com o sangue e não parar de sangrar nunca mais, até morrer. Eu fico com medo, sabe, meu pai disse que se a gente não arrancar o dente que tá querendo sair, os outros vão nascer tudo torto e podre e ele vai ter que gastar um dinheirão mandando arrumar. Será que arrumar dói mais do que arrancar agora? Ai não sei mas nem contei pra ninguém naquele dia não, esperei um tempinho pra ver se ele saia sozinho mesmo.

            Aí eu saí pra chamar a Gabi, minha amiga que mora logo do outro lado da rua, a gente podia brincar até na hora do almoço, depois a gente ia pra casa, tomava banho e se encontrava na escolinha pra brincar mais. “Ô Gabi”, eu gritei. Daí ela saiu correndo porque já tava me esperando, trouxe a bola pra gente jogar queimada mas só tinha nós duas a gente ia ter que fazer alguma coisa diferente tipo ver quem deixava a bola cair primeiro. Quem perdesse ia ter que ir lá na casa mal-assombrada que foi abandonada depois que a Senhora Lourdes morreu e deixou tudo que era dela lá dentro. Ninguém nunca que quis entrar no lugar, deus que me livre. Mas a gente combinou assim então assim é que ia ser. Começamos a jogar a bola uma pra outra e tava muito engraçado porque a gente não olhava pro chão nem pro lado e tropeçava e caía mas sempre deixava a bola no ar, a gente quase que morreu de tanto rir uma da outra. Só que daí chegou um moço mais velho, parecia meu pai, sabe, ele tinha uma barba que era igual do moço da televisão e ele tava suando e rindo pra gente. A Gabi viu e perguntou se eu conhecia o moço, eu falei que não, e eu não conhecia mesmo, nunca que tinha visto ele na nossa rua. Aí ele foi chegando perto da gente até que pegou a bola que a gente tava jogando pro alto e acabou com a nossa brincadeira, ficou perguntando qual era nosso nome mas a gente não respondeu. Ele falou que um gato tinha comido nossa língua e eu bem mostrei minha língua pra ele só pra ele ver que eu tinha língua mas não queria era falar com ele. Ele falou “nossa, que língua gostosa”. Eu não entendi nada, só que comecei a ficar com medo, ele tava olhando esquisito, a Gabi me puxou e falou pra gente ir embora mas a gente precisava da bola. A Gabi pediu a bola e o moço falou que não ia dar aquela não, que na casa dele ele tinha um montão de bola legal e que ia dar todas elas pra gente. Ai a gente riu, “duvido, você já é grande, nem brinca mais de bola”, eu falei. “Mas as bolas que eu tenho são pra meninas brincarem, meninas tipo vocês assim, bem pequenininhas”. Sei lá, tava esquisito, a gente preferiu ficar quieta. A Gabi falou que ele podia ficar com as bolas. Quando o vizinho saiu pra botar o lixo pra fora e olhou pra gente, o moço devolveu nossa bola. A gente ficou muito feliz e agradeceu. Ele pediu pra gente virar de costas porque queria ver uma coisa e a gente virou sem pensar. Ele falou que a gente tinha pernas bem gostosas, que nosso shortinho tava chamando ele. Eu não gostei. Comecei a chorar. Ele ficou bravo e falou que eu era uma vadia porque se tava de shortinho na rua e brincando de bola eu tava era querendo dar. Eu fiquei muito triste e fiquei com vergonha da minha perna, puxei a Gabi e entrei pra dentro de casa. Falei pra minha mãe tudo que aconteceu mas ele nem acreditou, eu pedi pra não usar short nunca mais só que tava calor e eu tive que usar, daí pra ninguém olhar eu peguei a faca enquanto minha mãe tomava banho e cortei minha perna toda. Que nojo que eu tinha de mim, credo eu era muito nojenta. 



* O título refere-se ao caso de Valentina, participante do Masterchef Júnior Brasil. Entenda o caso aqui.