quarta-feira, 1 de junho de 2016

Sobre Sororidade

Venho percebendo duas correntes se popularizando pelas redes sociais: uma que diz que toda feminista que se preze deve amar incondicionalmente as outras mulheres, e outra que diz que não é bem assim, você precisa mesmo é respeitar, mas tem que levar em conta que existe mulher “sem caráter”. Ora, vejam. Vamos lá.
Ninguém, de fato, é obrigado a amar ninguém. Nem mulher, nem homem, nem periquito, nem papagaio. Você, de fato, é obrigada a respeitar todos. Mas o amor da primeira corrente é, intrinsicamente, respeito. É muita desonestidade olhar para nós feministas e dizer que temos que amar uma mulher incondicionalmente quando, na verdade, estamos dizendo que você tem que procurar compreender suas semelhantes e não julgar, rivalizar, zombar. Principalmente se o motivo disso tudo for um homem. Ou a cultura que privilegia este homem.
Enfim. Minha crítica então se direciona à segunda corrente de pensamento. O que define o caráter de alguém? Vamos analisar algumas hipóteses e rebater um pouco desse pensamento que me parece calcado ainda em um machismo enrustido de “não sou obrigada a nada”.
1.      A mulher é criminosa
Não, você não é obrigada a amar uma criminosa. Mas não fuja do esforço de compreender esse crime. Em que condições vive essa mulher? Há possibilidades desse crime ter sido motivado por alguma pressão social? Nada justificará um crime, mas só julgue severamente uma mulher se também faz isso com um homem. Não adianta você querer a morte da Suzane von Richthofen e nem lembrar que o Champinha existe.
2.      A mulher é amante do seu namorado/ficante/marido
Não, você não é obrigada a amar a amante de qualquer boy seu. Realmente é triste saber que talvez essa mulher não a tenha respeitado. Mas você precisa entender que quem tem um relacionamento com você não é ela, e que ela, provavelmente, não tem acesso a teorias feministas como você tem. Tente sempre entender que vocês foram criadas sob um patriarcado que as querem como inimigas, competidoras, e que atribui valor excessivo ao homem. NÃO SUSTENTE ISSO. Converse com o seu boy, exija atitudes dele. Converse com ela, esclareça a situação, mostre que esse relacionamento é prejudicial para os três, posto que nenhum dos interessados é respeitado pelo o outro. É importante também ouvir sempre os dois lados da história e levar em conta toda a cultura sexista em que vivemos. Se os amantes insistirem, saia de cena. O arrependimento de maleficiar uma mulher sempre chega ao coração da outra. Pode não evitar que seu relacionamento acabe, mas edifica e empodera a outra mana.
3.      As pessoas dizem que a mulher é vagabunda
Nunca. Nunca caia nessa cilada. Você não é obrigada a amar mulher vagabunda porque essa mulher não existe. Existe mulher que reproduz o machismo, que é massacrada por ele, que morre sem enxergar seus malefícios. Mas elas não são vagabundas. O patriarcado criou essa categoria para deslegitimar a vida social da mulher, principalmente quando ela reclama para si atitudes que são tidas como “naturais” para os homens. Gostar de sexo não é falta de caráter; nem gostar de beber, nem de fumar, nem de inalar loló, seja lá o que você faz que não é coisa boa aos olhos da sociedade. Ela também não é vagabunda porque anda de salto, ou porque usa batom vermelho, tem os cabelos longos, usa calça justa, tem silicone, mostra barriga, tem tatuagem, teve filho na adolescência, ou qualquer, QUALQUER coisa do tipo. NÃO EXISTE VAGABUNDA. Você pode não repetir determinadas atitudes e, obviamente, não irá amar uma pessoa que não condiz com seus valores pessoais. Mas vai ter que compreender e aceitar. E isso é mais do que respeitar.

São muitos os pontos que poderíamos debater e discutir. Até o momento, a leitora deve estar pensando: “mas moça, você está defendendo a segunda corrente de pensamento, não? Está dizendo que não tem necessidade de amar esta ou aquela mulher, e sim respeitá-la”.
Não. Estou dizendo outra coisa. O que quero é fazer com que reflitam e não caiam nessa conversa de que se deve simplesmente respeitar uma semelhante. Esse é o discurso de gente que, por exemplo, diz que não aceita a comunidade LGBT. Dizem elas: “Respeito, mas não concordo”. Isso é julgar o mérito, isso é condenar. E em se tratando de nossa classe, a classe feminina, julgar é perigoso, é pisar em ovos. Hoje apontamos o dedo, e amanhã a sociedade aponta para nós.
Essa teoria do “você lá e eu aqui, com muito respeito” é segregacionista, é falaciosa.
Sinceramente, um desserviço à luta feminista.
Prefiro ficar com o amor incondicional porque podemos debater dentro dele todas as problemáticas antes de simplesmente arranjarmos uma teoria para legitimar nossa rixa/mágoa/raiva por alguma mulher.




Avante!

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Gênero frito ao molho sutil

Vai um pedaço?


               O boom da gourmetização traz consigo muito mais do que apenas deliciosas novas formas de olhar para antigos pratos simples e caseiros. A grande moda culinária do século XXI trouxe os homens à cozinha, sem rodeios ou apresentações maiores. Aqueles que outrora negavam determinado espaço da casa, agora o constrói em galpões e chefia outros trabalhadores. São essas coisas que só a modernidade nos proporciona.
              Não é difícil perceber a visibilidade que o chef de cozinha passou a ter nos círculos sociais. Provavelmente aquele primo distante, tímido e quieto, tornou-se agora o grande chef da família: entendedor de aromas e sabores, prepara o almoço especial do dia das mães e é contratado para grandes eventos fora da cidade. À mulher, continua-se destinando a beira do fogão, a falta de técnica, o serviço desgastante da rotina. Mas isso é bobagem, não é mesmo? Feminismo é vitimismo. Não, não é. Nós precisamos olhar mais criticamente para o mundo, questionar suas proposições (e negá-las quando necessário).
              Eu sempre assisto realitys sobre culinária e percebo que raras são as mulheres que se dispõe a participarem de competições do gênero. Elas não existem? Ou será que os homens realmente cozinham melhor do que as mulheres? Ou ainda: será que a gourmetização, claramente de cunho midiático, se recusa a ter como protagonista alguém que foi obrigada a ter seu lugar restrito à cozinha? Me parece que este é o jogo. A cozinha cotidiana, aquela das obrigações e da monotonia, tem pouco valor naquilo que toca ao status social do indivíduo. A casualidade e a dedicação exclusiva à execução de uma tarefa descolada do tédio da vida costumeira, com absoluta certeza logram melhores resultados e, obviamente, ocupam lugar de maior destaque na configuração da sociedade. Esse papel é atribuído ao homem e, justamente por isso, ele é o mestre dos pratos gourmets. Aquele que se ocupa do cozimento de alimentos mirando fins financeiros ou de divertimento tem a capacidade de se sobressair no momento da produção, muito porque sua história como sujeito não o condena a deter o espaço da cozinha como o único em que pode agir. O homem age em todos os espaços porque ele é universal. E a culinária agora também o é. Convergências do acaso?
            Ao longo do processo civilizatório desigual do qual hoje colhemos os frutos, a mulher foi ensinada a cozinha de maneira semelhante a qual foi ensinada a andar, comer, falar. O preparo do alimento deveria ser, entende a sociedade, função orgânica feminina. Não mais do que automatismo. Já para o macho, compreende-se seus esforços por adentrar o mundo culinário como grandes feitos. Por muito tempo, os cozinheiros sofreram com o machismo porque a cozinha era o lugar da mulher, era o ambiente em que se rebaixava, em que se minimizava o outro gênero. A partir do momento em que se percebeu que os homens sempre encarariam a culinária de forma diferente da que a historicidade obrigou as mulheres a encará-la, investiu-se em trazer ao público a supremacia masculina, tirando, mais uma vez, a visibilidade da mulher.
           Ninguém aqui precisa deixar de comer em um restaurante em que o chef é homem, mas precisamos SIM problematizar esse assunto, perceber os espaços em que as mulheres estão sendo sutilmente apagadas.



Pra quem vai sua torcida no MasterChef?

sábado, 2 de janeiro de 2016

Subjetiva




Eu queria ser astronauta. Gostava mesmo de olhar para o céu, contar estrelas, tentar decorar os nomes que consultava nas enciclopédias. Falava para os adultos que não me importava em ser pequena porque nas aulas de ciências me diziam que perante o resto do universo, todos nós éramos seres bem insignificantes. Desenhava os diferentes planetas, brincava de zero gravidade. Mas no final das contas tinha de me contentar com pentear o cabelo das bonecas e ouvir da boca de meus pais que meninas se preocupam com cabelos, unhas, corpos. O universo era exclusivamente masculino.
Meu sonho era lutar na guerra. A princípio pode parecer algo tolo, mas para mim significava ser forte tanto quanto meus irmãos. Eu sabia que para guerrear precisávamos de aparatos, inteligência, não tanta força física. O que me alegavam era que jamais conseguiria vencer uma briga com um homem porque eles eram mais fortes e acabariam comigo ‘em dois tempos’. Pois bem, em uma aula de história a professora contou como os soldados guerreavam, como se armavam. Foi então que pensei: se eu aprender a atirar, poderei ser igual a todos eles, digo, a todos os homens que também sabem atirar. Porém, tudo que recebi foram represálias. Diziam que mulheres não eram bem-vindas no exército, que mulheres ‘violentas’ perdem a tal da feminilidade e nunca arranjam maridos. Não, nunca me perguntaram se eu gostaria de me casar um dia. Apenas me mostraram o quanto meu sonho era inviável para uma garota.
Já eu gostava de jogar bola, era atacante do time do bairro. Parecia que havia nascido com o dom, se a bola chegasse em meus pés podiam contar logo com bons dribles e gols. Ninguém ousava ser melhor, ninguém se atrevia a roubar-me a bola. Deitava todos os dias em minha cama e sonhava em me profissionalizar, tinha ídolos que me inspiravam. Só que por essa época eu não me dava conta de que todos eles eram homens, que o mundo do futebol não permitia garotas – ou que pelos menos elas teriam menos oportunidades, seriam menos reconhecidas. Descobri que não poderia sonhar com nada disso quando comecei a ser hostilizada porque meus seios estavam crescendo. Os meninos já não me queriam no time, apontavam aquela suposta fragilidade e colocavam-me em meu ‘devido lugar’. Futebol não era coisa de mulher, afinal.
Eu só queria usar bermudas ao invés de saias. Todas as vezes em que ia visitar minha avó, me sentia muito à vontade para brincar com meus primos e não prestava atenção aos ‘modos’, quer dizer, aos ditos ‘bons modos’. Sentava da maneira mais confortável possível e me distraía quanto às roupas que vestia... acabava mostrando minhas roupas íntimas e levando uns bons tapas de meus pais. Minha única vontade era brincar livremente, mas como menina, minha mãe dizia, eu deveria me preocupar mais com minha imagem. Preocupar mais com meus cabelos, com minhas roupas, com as palavras que saiam de minha boca. Eu simplesmente não poderia ser espontânea em momento algum. Brincadeiras eram coisas permitidas apenas para homens, aparentemente a vida também.
Eu gostaria de sair na rua usando roupas curtas porque sinto calor, gostaria de sair com mais de um cara na mesma noite, pelo menos de vez em quando, porque nem sempre o primeiro que beijo desperta algum desejo maior em mim; gostaria também de poder criar um filho sozinha sem ter que prestar contas à sociedade sobre o paradeiro do pai da criança, isso porque muitas vezes eu o detesto, ou simplesmente não o quero ver, ou qualquer outro motivo; gostaria de poder controlar meu corpo: engravidar quando quero, engordar quando quero, malhar e emagrecer quando quero; gostaria de ficar muito bêbada e voltar em segurança para casa, gostaria de transar somente quando quero muito; gostaria de gozar. Ah! Eu também gostaria de falar um monte de palavrões sem ter que me preocupar com o que vão pensar de mim, sair sem maquiagem, sem pentear os cabelos, sem fazer unha. Essas coisas me fazem perder um tempo digno de investimentos na bolsa de valores.... Eu tenho muitos sonhos, de verdade, e por essas horas estão todos mortos dentro de mim. Descobri que aparentemente a vida não me é negada, mas concretamente sim. 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Que é religião?




            Quando era pequena, meus pais diziam-me para andar na linha. Tal advertência significava, basicamente, que eu deveria respeitar os preceitos e os valores morais vigentes na sociedade. Riram da vez em que esbravejei, aos meus sete anos de idade, que jamais me casaria ou teria filhos. Olhavam-me com a piedade de quem sabe estar diante de um ser humano ainda em formação, longe das contaminações dos costumes. Eu pouco tinha ideia do que ainda estava por vir.
            Meu pai era seguidor da umbanda. Descendente de imigrantes italianos, pouco se importava com o passado histórico de um simples sobrenome. Amava a terra em que nascera, em que estava. Era homem e havia milhões de oportunidades que se abriam a ele. Já minha mãe, de família negra, abandonou o catolicismo quando eu completei cinco anos de idade, e deixaria claro que nunca mais voltaria a pôr os pés em uma igreja. Apesar disso, não renunciou ao cristianismo, migrando então para o espiritismo. E neste ponto poderia ser óbvia a aproximação das filosofias de vida seguidas por meu pai e por minha mãe. Mas não, quando se escolhe uma religião, parece fechar-se o mundo, ninguém entende ninguém, e o mito da superioridade é quase que inevitável.
            Em minha casa, vivíamos sob um machismo imensurável. As tarefas domésticas só poderiam ser feitas por mim e por minha mãe, jamais por meu pai e por meu irmão. Quando eu questionava essa configuração, obtinha a resposta, em tom natural: porque eles são homens. Essa situação caracteriza apenas um exemplo de tantos hábitos praticados que nos punham em estado desigual, que destinavam nós, mulheres, ao exercício das coisas simples e medíocres. Foi na religião que minha mãe encontrou uma possível vingança. E essa “vingança” era a mais detestável possível. O espiritismo pregava o estudo do evangelho, a atividade de leitura diária de livros não só sagrados, como também literários e filosóficos. Era uma crença que se dizia racional (?) e situava Jesus historicamente como um ser que atingiu a perfeição espiritual, mas que já tivera outras reencarnações (há uma corrente espírita que acredita que Jesus fora a reencarnação de Sócrates). Justamente por todas as justificativas bem elaboradas dadas pela doutrina criada pelo educador francês Allan Kardec, minha mãe julgava mais lúcido de sua parte crer em Deus através deste viés, e não através dos rituais da umbanda. Respondia, pois, preconceito com preconceito. Fazia questão de dizer o quanto meu pai era irracional de acreditar nas entidades e nos orixás advindos do candomblé, minimizava a importância das curas oferecidas através de influências de cerimônias indígenas e apenas creditava algum valor à religião quando se deparava, vez ou outra, com fundamentos análogos aos do catolicismo e espiritismo. Ela muito me lembrava os portugueses intencionando a catequização de negros e índios no Brasil. E ela era vítima desse processo histórico! Porém, a necessidade criada em torno da humanidade de se crer e temer à Deus nunca a deixou enxergar essa falha, quanto menos as mais profundas.
            Obviamente, a religião é uma criação humana e atende a determinados interesses. Não importa qual fora a primeira ou qual será a última, onde ela teria ou terá sido criada, enfim. O que importa é que ela sempre refletirá uma configuração social que deseja ser mantida. O casamento, por exemplo, foi inventado para ser uma extensão das propriedades do homem, e financeiramente significou isso por muito tempo. Entretanto, atrelado a isso, formou-se a ideia da mulher na sociedade. Pagava-se o dote, o pai doava terras ao genro. Evidentemente, casar era um negócio e gerava dinheiro. Por detrás dos panos – ou melhor, dos documentos oficiais – a mulher tornava-se um bem não-financeiro do marido, mas tão valioso quanto. Por quê? Porque ela atestava sua virilidade; a dominação de uma mulher poderia ser tão interessante quanto a dominação de um território, e era isso que se fazia. Não digo que o casamento de hoje em dia não possa ser diferente, mas é importante que saibamos sua origem. É como o negro assalariado: as condições de trabalho podem ser lindas, mas observar ele sempre ocupando cargos menores do que os dos brancos é de se questionar.
            De qualquer maneira, o que quero dizer é que a religião, além de tudo, é uma extensão e tentativa de reafirmação do machismo na sociedade. A visibilidade dada aos personagens masculinos, seja Jesus, Maomé, Moisés, Buda, Oxóssi, é maior do que a dada às personagens femininas, que quando ocupam lugar de prestígio, é sob a forma de abdicação do corpo, das práticas que a lembram de seu gênero e envolta dos mitos que a perseguem – a exemplo da virgem, digo, virgem Maria. Embora se diga que os anjos ou Krishna não possuem sexo, são eles retratados como figuras masculinas. Somado ao preconceito étnico que sofre as religiões de origem africana, está o senso comum do entendimento da figura da Pomba Gira, que ou se reflete aos leigos como puta, destruidora de casamentos, ou como motivo de chacota. Dentro do exercício religioso, seu lado “ruim” utiliza-se da beleza feminina para externar-se.
E Deus, bem... que é Deus senão o retrato do homem detentor do poder e da razão, único que pode julgar e decidir o destino, figura máxima do privilégio do macho?



A história que te contam é outra, mas estou aqui para te lembrar: Deus não criou o homem a sua imagem e semelhança, e sim o homem criou Deus a sua imagem e semelhança. Bem como a mulher não veio da costela de um homem, e sim ele veio do útero de uma mulher. E isso é o que se pode compreender como verdade, nada mais. 


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Clandestina



            Imaginou a existência. Pensar sem linguagem é inconcebível aos seus olhos tão treinados a enxergarem o mundo dentro da lógica semiótica que traduz o cotidiano em palavras. Não lembrava de quando nasceu, de quando respondia mecanicamente aos movimentos dos pais, de quando não tinha noção de sociedade, economia, política. Era impraticável as atitudes de quando tinha apenas alguns meses de vida: comer deixara de ser apenas por necessidade, e vestir-se também. Aos poucos sabia que fora inserida em um sistema ditador. Ele a disse claramente: “Tu és mulher. Tu és fraca. Tu és latina. Tu és puta”. Não havia meios com que pudesse lutar para simplesmente não estar ali, pois ignorar a formação arbitrária da sociedade não constava na lista de concessões que o universo a oferecera.
            Admirava cinema francês, música britânica, moda italiana, comida estadunidense. Por aí, já começara a encarar as dificuldades geográficas que massacram o sujeito latino-americano. Para ele, muita coisa era (é) negada. Para ele, a bem da verdade, praticamente tudo era (é) negado. Seu povo foi explorado, colonizado, massacrado e nenhuma esperança de mudança pode-se ter à vista. Os grandes continuam sugando dos menores, e as belezas naturais dos países americanos que quase não são lembrados de serem americanos porque somente um país na América é digno, da perspectiva predominante, de ser denominado pelo adjetivo de um continente inteiro, ah... essas belezas estão mortas. Ou melhor! Essas belezas viraram outras belezas que só são belezas para quem as concentram em seus próprios bolsos. Ou em suas contas gorduchas, abertas em paraísos fiscais, paraísos europeus, paraísos só para quem tem as belezas e podem comprar as passagens e garantir as hospedagens e tanta coisa que o sujeito latino-americano está longe de ter, e se tem, por alguma obra sistemática do destino, é sempre o estrangeiro desses lugares.

            Buscara, constantemente, viver histórias alheias à realidade de seu país. Também buscara conhecer pessoas etnicamente estranhas ao território latino: olho azul, cabelo loiro, sardinhas pipocando nas bochechas. Porém soube que esse indivíduo etnocêntrico europeu-estadunidense não a bem queria, visto que a mulher mestiça das Américas é pintada como repositório de esperma. E seriam só as latinas? Claramente que não, mas com toda a certeza a dicotomia do “mulher para casar/mulher para trepar” evidencia-se em grande, grandessíssimas escalas, nas colonizadas em solo americano, que guardam no peito toda essa sujeira não noticiada, não escancarada. Economicamente, ainda somos exploradas. Sexualmente também. Pretende, então, falar mais sobre isso na mesa de bar. Pretende problematizar esse lugar mesquinho que a fizerem engolir com chá inglês.



segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Carta de um jovem reacionário


Então para por aí. Pode ir parando, dando meia volta e se colocando em seu devido lugar. Nós já reconhecemos que vocês representam boa parcela da sociedade e estamos estudando melhores salários – embora já se possa notar o grande avanço histórico que possibilita a inserção da mulher no mercado de trabalho. Aliás, não sei como não se envergonham de pedir salários igualitários quando o governo outorga suas aposentadorias anos antes da nossa. Eu pensava que eram minimamente inteligentes e saberiam o que quer dizer “recompensa”. Também estamos cansados de dizer que podem sim se prevenir da gravidez. Inclusive, esse é um dever de todas vocês: só embucha quem quer, entendeu? Suas ancestrais lutaram pela liberação dos métodos contraceptivos porque estafaram-se de pôr mais de dez crianças no mundo, então tudo o que podem fazer é valorizar esse incrível ganho feminino, e não ficar por aí pregando o assassinato de fetos. Vocês argumentam que a descriminalização do aborto evitaria mortes, mas não enxergam que a culpa é exclusivamente de vocês mesmas. Se eu fosse mulher, com certeza daria um jeito: é pílula, é injeção, é DIU.... Enquanto homem eu não posso fazer nada, me desculpem, trata-se de biologia, eu não nasci para ter filhos. O máximo, de minha parte, é a camisinha, só que ela não é cem por cento eficaz, rola alguns imprevistos, fora que incomoda muito às vezes. Enfim, homem é outro papo.
Uma conquista importante foi a erradicação da moda feminina que previa apenas o uso de vestidos e saias longas, sempre cobrindo o corpo até os calcanhares. Isso, nós homens agradecemos. O que é bonito é para ser mostrado, e eu não sei quem inventou aquelas anáguas malditas que não nos deixavam apreciar as boas curvas da mulher. Mas calma, não precisa começar a me ofender por causa disso, eu sei que muitas de vocês realmente preferem uma calça jeans, e podem usá-las à vontade. Eu, sinceramente, não entendo porque vocês reclamam de tudo, afinal de contas estão livres para decidir o tipo e o tamanho da roupa que irão vestir. Só que eu acho que em algum momento da história vocês perderam o bom-senso. É permitido o short curto? Sim, é permitido. Logo, eu tenho todo o direito de olhar. Saiam dessa, querem controlar até meu campo de visão. O negócio não era fazer com que deixássemos de interferir em suas vidas? Pronto, não interferimos mais. Portanto, vocês também não podem interferir na nossa. Está aí o problema das feministas atuais: desconsideram o antigo movimento feminista e exigem privilégios simplesmente por serem mulheres. Nada a ver isso. Até votar vocês podem, deviam mesmo era exercer esse direito mais corretamente, porque essa quantidade de político corrupto não é normal. Quanto aos cargos de poder, vocês só não os ocupam em demasia porque, coincidentemente, ainda não existem muitas mulheres capacitadas. É ridículo dizerem que só por serem mulheres não estão presentes, maciçamente, no congresso. Estudem mais, invistam em suas carreiras, só assim poderão chegar no lugar em que desejam. Mas privilégios vocês não terão, ninguém aqui vai passar na frente do amiguinho só porque nasceu com vagina. É tudo balela essa história de que o machismo as persegue todos os dias. Vocês podem ir e vir à vontade, têm completa liberdade para andar desacompanhadas e decidirem sobre seus destinos. Eu, por minha vez, posso tecer um elogio caso lhe veja andando pela rua. Não entendo um elogio como um problema, vocês estão muito paranoicas. Além de tudo, as relações entre casais estão mais liberais, o casamento não é mais necessário e a virgindade muito menos. Daí vocês começam a reclamar que passamos a mão, que forçamos um beijinho aqui e outro ali, mas é tudo reflexo da atualidade. A quantidade de menina que vira corredor em balada, passando na mão de todo mundo, não é brincadeira não. E aí vocês dizem que eu não posso reclamar de beijar uma garota que se bobear, chupou sei lá quantos paus dentro do banheiro. Poxa, fala sério, cada um tem que ver seu lado também. Do mesmo jeito que mulher se incomoda de levar uma passada de mão na bunda, o homem que é homem também se incomoda de pagar um boquete por tabela. Se combinarmos de sermos solidários uns com os outros, aposto que muita coisa muda nesse mundo.
Retomando minhas ideias, peço para que pensem nas universidades. Elas estão lotadas de mulheres! Vocês estão sempre nos dizendo que tememos por encontrarmos-lhes ocupando os mais diversos espaços, porém estão totalmente enganadas. Eu amo ver mulher, me distrai muito. Eu só não gosto de mulher feia, e o feminismo de hoje em dia quer apenas isso, o advento da feiura. Cismaram com essa coisa de que não precisa depilar, sendo que na verdade, deixar aqueles cabelos na perna e debaixo do braço – para não citar outros lugares – é nojento pelo simples fato de que mulher tem que ser lisinha, bonitinha, cheirosinha. Imagina só eu lá fazendo carinho na minha namorada e passo a mão na coxa dela e OPA! Parece que estou alisando um barbudo. Não dá, sério. Acaba comigo, me broxa, destrói minha virilidade.
De qualquer maneira, não quero me estender mais nesse assunto. Não dá para discutir com vocês. Eu apresento meus pensamentos, da forma mais pura e elucidativa, e o que recebo em troca? Xingamentos, ofensas, agressividade. O feminismo se perdeu. Vocês não sabem mais o que é ser mãe, vocês não sabem mais o que é conquistar um homem, vocês não sabem mais o que é ser feminina. Acho que nem cozinhar vocês devem saber mais. Por essa razão as chamamos de “feminazi”: vocês decidiram levar toda essa escrotagem para a vida de vocês e ainda querem pisar em nossas cabeças. Ai, ai.... Saudade da época em que mulher ficava quietinha em casa preparando um lanche para o marido. Saudade da época em que eu podia fazer minhas piadinhas eróticas com qualquer uma que passasse pela rua. Saudade de um tempo que não volta mais.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Valentina’s Day*




"A menina sente que o corpo lhe escapa, não é mais a expressão clara de sua individualidade ; torna-se estranho para ela; e, no mesmo momento, ela é encarada por outrem como uma coisa: na rua, acompanham-na com o olhar, comentam sobre sua anatomia; ela gostaria de ficar invisível; tem medo de tornar-se carne e medo de mostrar essa carne".
(BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, Vol. II, p. 407, 1949)








            Eu acordei aí eu queria brincar, mas minha mãe não parava de falar que era pra eu tomar meu café porque a gente tem que ficar forte pro resto do dia. Outro dia eu bem tava vendo no filme da sessão da tarde que lá nos Estados Unidos o pessoal come bacon com ovo e com panqueca, só que eles não são fortes não, eles são que nem a gente. Também não dá pra saber, eu nunca briguei com ninguém lá depois do café pra poder falar “nossa como essa pessoa é forte”. Eu acho que o meu nescau é melhor, na propaganda mesmo fala que a gente tem mais energia depois que toma um copão de nescau, mesmo se ele tiver lotado de açúcar que nem o meu tava naquele dia porque eu coloquei escondido. Depois que eu tomei ainda tive que escovar o dente, tinha um que tava bambo, meio solto, mas eu não tirei não porque dói à beça e sangra e eu posso engasgar com o sangue e não parar de sangrar nunca mais, até morrer. Eu fico com medo, sabe, meu pai disse que se a gente não arrancar o dente que tá querendo sair, os outros vão nascer tudo torto e podre e ele vai ter que gastar um dinheirão mandando arrumar. Será que arrumar dói mais do que arrancar agora? Ai não sei mas nem contei pra ninguém naquele dia não, esperei um tempinho pra ver se ele saia sozinho mesmo.

            Aí eu saí pra chamar a Gabi, minha amiga que mora logo do outro lado da rua, a gente podia brincar até na hora do almoço, depois a gente ia pra casa, tomava banho e se encontrava na escolinha pra brincar mais. “Ô Gabi”, eu gritei. Daí ela saiu correndo porque já tava me esperando, trouxe a bola pra gente jogar queimada mas só tinha nós duas a gente ia ter que fazer alguma coisa diferente tipo ver quem deixava a bola cair primeiro. Quem perdesse ia ter que ir lá na casa mal-assombrada que foi abandonada depois que a Senhora Lourdes morreu e deixou tudo que era dela lá dentro. Ninguém nunca que quis entrar no lugar, deus que me livre. Mas a gente combinou assim então assim é que ia ser. Começamos a jogar a bola uma pra outra e tava muito engraçado porque a gente não olhava pro chão nem pro lado e tropeçava e caía mas sempre deixava a bola no ar, a gente quase que morreu de tanto rir uma da outra. Só que daí chegou um moço mais velho, parecia meu pai, sabe, ele tinha uma barba que era igual do moço da televisão e ele tava suando e rindo pra gente. A Gabi viu e perguntou se eu conhecia o moço, eu falei que não, e eu não conhecia mesmo, nunca que tinha visto ele na nossa rua. Aí ele foi chegando perto da gente até que pegou a bola que a gente tava jogando pro alto e acabou com a nossa brincadeira, ficou perguntando qual era nosso nome mas a gente não respondeu. Ele falou que um gato tinha comido nossa língua e eu bem mostrei minha língua pra ele só pra ele ver que eu tinha língua mas não queria era falar com ele. Ele falou “nossa, que língua gostosa”. Eu não entendi nada, só que comecei a ficar com medo, ele tava olhando esquisito, a Gabi me puxou e falou pra gente ir embora mas a gente precisava da bola. A Gabi pediu a bola e o moço falou que não ia dar aquela não, que na casa dele ele tinha um montão de bola legal e que ia dar todas elas pra gente. Ai a gente riu, “duvido, você já é grande, nem brinca mais de bola”, eu falei. “Mas as bolas que eu tenho são pra meninas brincarem, meninas tipo vocês assim, bem pequenininhas”. Sei lá, tava esquisito, a gente preferiu ficar quieta. A Gabi falou que ele podia ficar com as bolas. Quando o vizinho saiu pra botar o lixo pra fora e olhou pra gente, o moço devolveu nossa bola. A gente ficou muito feliz e agradeceu. Ele pediu pra gente virar de costas porque queria ver uma coisa e a gente virou sem pensar. Ele falou que a gente tinha pernas bem gostosas, que nosso shortinho tava chamando ele. Eu não gostei. Comecei a chorar. Ele ficou bravo e falou que eu era uma vadia porque se tava de shortinho na rua e brincando de bola eu tava era querendo dar. Eu fiquei muito triste e fiquei com vergonha da minha perna, puxei a Gabi e entrei pra dentro de casa. Falei pra minha mãe tudo que aconteceu mas ele nem acreditou, eu pedi pra não usar short nunca mais só que tava calor e eu tive que usar, daí pra ninguém olhar eu peguei a faca enquanto minha mãe tomava banho e cortei minha perna toda. Que nojo que eu tinha de mim, credo eu era muito nojenta. 



* O título refere-se ao caso de Valentina, participante do Masterchef Júnior Brasil. Entenda o caso aqui.